Sangue, Levítico 17:10 e a Lei Mosaica

Jan S. Haugland e Lee Elder


O próximo conjunto de textos usados pela Sociedade Torre de Vigia em apoio do seu ensino sobre o sangue encontra-se na Lei mosaica e está registado nos livros de Levítico, Deuteronômio e Primeiro Samuel.

Comecemos por lê-los, juntamente com os comentários da Sociedade Torre de Vigia na brochura sobre o sangue:

"'Quanto a qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo. 11 Pois a alma da carne está no sangue, e eu mesmo o pus para vós sobre o altar para fazer expiação pelas vossas almas, porque é o sangue que faz expiação pela alma [nele]. 12 Foi por isso que eu disse aos filhos de Israel: "Nenhuma alma vossa deve comer sangue e nenhum residente forasteiro que reside no vosso meio deve comer sangue." 13 "'Quanto a qualquer homem dos filhos de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que caçando apanhe um animal selvático ou uma ave que se possa comer, neste caso tem de derramar seu sangue e cobri-lo com pó. 14 Pois a alma de todo tipo de carne é seu sangue pela alma nele. Por conseguinte, eu disse aos filhos de Israel: "Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado [da vida]." (Levítico 17:10-14)

Neste ponto é útil analisar como a brochura corrente da Sociedade Torre de Vigia trata estes versículos. Aqui está uma citação direta:

"Ele novamente se referiu ao sangue ao dar a Israel o código da Lei. Ao passo que muitos respeitam a sabedoria e a ética daquele código, poucos estão cônscios de suas sérias leis sobre o sangue. Por exemplo: "Se alguém da casa de Israel, ou dos estrangeiros que residirem entre eles, tomar qualquer sangue, eu porei a Minha face contra a pessoa que toma o sangue, e a cortarei de entre seus parentes. Pois a vida da carne está no sangue." (Levítico 17:10, 11, versão judaica Tanakh) Deus então explicou o que um caçador devia fazer com um animal morto: "Ele deve derramar o seu sangue e cobri-lo de terra.... Não deveis tomar o sangue de carne alguma, pois a vida de toda carne é o seu sangue. Qualquer pessoa que tomar dele será cortada." -- Levítico 17:13, 14, Ta. [...] Ao passo que a lei sobre o sangue tinha aspectos relativos à saúde, havia muito mais envolvido. O sangue tinha um significado simbólico. Representava a vida concedida pelo Criador. As pessoas, ao tratarem o sangue como algo especial, demonstravam que dependiam Dele para viver. Sim, o motivo principal pelo qual elas não deveriam tomar sangue era, não que o sangue era ruim para a saúde, mas que o sangue tinha um significado especial para Deus." (Como Pode o Sangue Salvar a Sua Vida? (1990), pp. 3-4)

Portanto, nestas partes da Lei mosaica encontramos detalhes a respeito do sangue. Este deve ser derramado no chão e qualquer pessoa que o coma deliberadamente será decepada.

Será que estes textos estão a reafirmar e alargar o assim chamado "pacto eterno" encontrado em Gênesis capítulo 9? Conforme já vimos, esse pacto não era eterno, pelo menos não era eterno em todos os aspectos. Além disso, estes mandamentos são claramente uma parte da Lei de Moisés. Isto é muito importante pois os cristãos não estão sob a Lei mosaica.

  • "Porque Cristo é o fim da Lei, para que todo aquele que exercer fé possa ter justiça." (Romanos 10:4)

  • "No entanto, antes de chegar a fé, estávamos sendo guardados debaixo de lei, entregues juntos à detenção, aguardando a fé que estava destinada a ser revelada. 24 A Lei, por conseguinte, tornou-se o nosso tutor, conduzindo a Cristo, para que fôssemos declarados justos devido à fé. 25 Mas agora que chegou a fé, não estamos mais debaixo dum tutor." (Gálatas 3:23-25)

Consequentemente, os textos da Lei de Moisés não têm em si mesmos, ou por si só, qualquer relevância na questão de saber se era apropriado um cristão usar sangue. A Lei mosaica foi pregada na estaca junto com Cristo. Ficou anulada, vazia e sem qualquer força ou efeito. Argumentar em contrário é negar as verdades simples afirmadas claramente ao longo de todos os escritos de Paulo e no Novo Testamento.

"Por meio de sua carne, ele aboliu a inimizade, a Lei de mandamentos, consistindo em decretos [...]" (Efésios 2:15)

A Sociedade Torre de Vigia tem reconhecido isso muitas vezes nos seus escritos:

"Se os seguidores judeus de Jesus não mais estavam sob a maldição da Lei, será que algum cristão se achava sob a obrigação de observar todos os mandamentos dados a Israel? Paulo escreveu aos colossenses: "[Deus] nos perdoou bondosamente todas as nossas falhas e apagou o documento manuscrito que era contra nós, que consistia em decretos e que estava em oposição a nós; e Ele o tirou do caminho por pregá-lo na estaca de tortura [de Cristo]." (Colossenses 2:13, 14) Não há dúvida de que muitos cristãos primitivos precisavam ajustar seu modo de pensar e reconhecer que tinham sido "exonerados da Lei". (Romanos 7:6)" (A Sentinela, 15 de novembro de 1989, p. 5, itálico nosso)

Apesar disto, a Sociedade Torre de Vigia acha apropriado citar essas leis defuntas para apoiar a sua política sobre o sangue. À medida que avançamos na leitura da brochura, deparamo-nos com um exemplo particularmente flagrante de atribuir aos textos bíblicos um sentido que pura e simplesmente não está lá:

"A Lei repetidas vezes declarava a proscrição do Criador a se tomar sangue para sustentar a vida. "Não o deves comer [i.e., o sangue]. Derrama-o na terra, como água. Não o comas, para seres feliz com teus filhos, fazendo o que é reto." -- Deuteronômio 12:23-25, Bíblia Vozes; Deut. 15:23; Levítico 7:26, 27; Ezequiel 33:25." (Como Pode o Sangue Salvar a Sua Vida? (1990), p. 4, itálico nosso)

Será que a Lei mosaica realmente declara a proscrição do Criador dessa forma? Com certeza que não. Em nenhum lado lemos sobre "a proscrição do Criador a se tomar sangue para sustentar a vida." O que lemos é que o Criador proscreve "comer" sangue. Esta é uma diferença subtil mas importante.

Existem muitas coisas que fazemos para sustentar a vida: respirar oxigênio, beber água, servir-nos de alimento, dormir e assim por diante.

Está claramente estabelecido que, de uma perspectiva médica ou científica, receber uma transfusão de sangue não é o mesmo que comer sangue. Por isso, a Sociedade Torre de Vigia sente necessidade de encontrar alguma maneira de ligar as duas coisas. Ela faz isso ao argumentar que quando a Bíblia diz para não "comer sangue", o que isto realmente quer dizer é não sustentar a vida com sangue. Claramente, não é isto o que os textos dizem.

Consideremos o parágrafo seguinte da brochura:

"Contrário ao raciocínio de alguns hoje, a lei de Deus sobre o sangue não deveria ser desconsiderada numa emergência. Alguns soldados israelitas, em certa crise de tempo de guerra, mataram animais e 'foram comê-los junto com o sangue'. Tratando-se duma emergência, era-lhes permissível sustentar a vida com sangue? Não. Seu comandante indicou-lhes que seu proceder ainda constituía um grave erro. (1 Samuel 14:31-35) Assim sendo, por mais preciosa que seja a vida, nosso Dador da Vida jamais disse que suas normas poderiam ser desconsideradas em caso de emergência." (Como Pode o Sangue Salvar a Sua Vida? (1990), p. 4, itálico nosso)

Agora, honestamente, será que é razoável referir-se a um grupo de soldados esfomeados como uma "emergência", ou é isso uma tentativa desastrada para associar o relato com as modernas emergências médicas que requerem transfusões de sangue? Qual de nós iria igualar uma crise médica de vida ou morte com um bando de guerreiros esfomeados?

Também vale a pena sublinhar mais uma vez o uso da expressão "sustentar" como substituto para a palavra "comer". Isso é uma manipulação deliberada do relato bíblico. É uma tentativa de fazê-lo dizer algo que ele não diz.

Por outro lado, o que esta história bíblica nos ensina é muito interessante. Repare no que aconteceu a estes soldados esfomeados que, numa "emergência", decidiram "sustentar a vida" comendo carne "junto com o sangue":

"Depois, Saul disse: "Espalhai-vos entre o povo, e tendes de dizer-lhes: 'Trazei a mim, cada um de vós, seu touro e, cada um, seu ovídeo, e tendes de fazer o abate neste lugar, bem como o comer, e não deveis pecar contra Jeová por comer junto o sangue.'" Por conseguinte, todo o povo trouxe perto, cada um, seu touro que se achava na sua mão, naquela noite, e fizeram o abate ali. 35 E Saul passou a construir um altar a Jeová. Com isso principiou a construir um altar a Jeová." (1 Samuel 14:34-35)

Apesar de a Lei mosaica exigir a morte de alguém que deliberadamente comesse sangue, a conseqüência do pecado grave destes soldados israelitas foi uma reprimenda verbal. No entanto, se uma Testemunha de Jeová hoje tiver uma emergência médica e aceitar uma transfusão de sangue, com toda a probabilidade será sancionada pela Sociedade Torre de Vigia e ser-lhe-á negado um relacionamento normal com os seus amigos Testemunhas de Jeová e membros da família. As suas ações serão vistas como um pecado grave merecedor da morte e expulsão da congregação.

O sangue estava no centro da Lei mosaica, com o seu sistema de sacrifícios animais, e tinha grande significado na vida de um israelita, visto que o derramamento de sangue podia expiar temporariamente o pecado. Claramente, nesse contexto o sangue era sagrado. Ao derramá-lo no chão e cobri-lo com terra, um caçador israelita mostrava o seu respeito pela vida que tinha tirado com permissão divina. Adicionalmente, um animal devidamente sangrado estaria mesmo morto e o caçador estaria em conformidade com o mandamento encontrado em Gênesis 9:4 que, conforme vimos, essencialmente significava que não se devia comer o animal quando este ainda estava vivo. Por fim, ao não comer o sangue, o israelita mostrava o seu apreço pelo significado do sangue usado no arranjo de sacrifícios animais do templo.

Vale a pena ler os capítulos 17 e 18 de Levítico para apreciar o contexto em que estas proibições ocorrem. Uma análise cuidadosa é reveladora. Por exemplo, o leitor talvez fique surpreendido ao ver quão preciosa é toda a vida para Deus. Se um israelita, ao matar um animal doméstico, não o trouxesse ao sacerdote para que o sangue fosse aspergido sobre o altar, ele tinha culpa de sangue e merecia a morte, exatamente como se tivesse morto outro humano! (Levítico 17:3-6)

Os requisitos eram muito mais simples quando envolviam animais selvagens e a caça, embora o sangue ainda tivesse de ser derramado no chão. (Levítico 17:13) Os requisitos mais estritos envolvendo um animal doméstico provavelmente ficam a dever-se ao seu uso como sacrifício de participação em comum envolvendo o adorador, o sacerdote e Jeová.

Uma pergunta lógica neste ponto seria: "Qual é o significado do sangue?" Há alguma coisa especial nele, alguma propriedade mágica?

A pergunta pode ser respondida se considerarmos o que a lei tinha a dizer sobre animais que morriam de causas naturais ou talvez mortos por um predador:

"Quanto a qualquer alma que comer um corpo [já] morto ou algo dilacerado por uma fera, quer seja natural quer residente forasteiro, neste caso terá de lavar suas vestes e banhar-se em água, e ele terá de ser impuro até à noitinha; e ele terá de ser limpo. 16 Mas, se não as lavar e se não banhar sua carne, então terá de responder pelo seu erro." (Levítico 17:15-16)

Podemos facilmente imaginar uma situação em que um israelita se encontrasse perdido, ou forçado pelas circunstâncias a permanecer num local, e sem comida. Se ele encontrasse um animal morto, claro que perceberia que o animal não tinha sido devidamente sangrado. A lei permitia-lhe comer este animal conforme providenciado no texto, desde que ele seguisse o que é claramente um ritual do código da lei. Se Deus estava disposto a permitir que um israelita comesse sangue sob estas circunstâncias, não estaria ele disposto a permitir que alguém aceitasse uma transfusão de sangue para preservar a vida numa emergência médica? É razoável assumir que sim.

Além disso, encontramos disposições adicionais na Lei a respeito de residentes forasteiros e de comer sangue de animais não sangrados:

"Não deveis comer nenhum corpo [já] morto. Podes dá-lo ao residente forasteiro que está dentro dos teus portões, e ele tem de comê-lo; ou pode ser vendido a um estrangeiro, porque és um povo santo para Jeová, teu Deus." (Deuteronômio 14:21)

Note que a razão apresentada para não comer o corpo morto é que os israelitas são um "povo santo". Não é o sangue ou a sua santidade que está em causa. Isto é claro pois Deus não se importa que não-judeus comam a carne com o sangue nela.

Se raciocinarmos sobre tudo isto, torna-se evidente que o sangue em si mesmo não era sagrado. Não possui propriedades mágicas. O sangue que corre pelas veias de uma criatura viva representa a vida e se alguém tirava uma vida tinha de derramar o sangue no chão, devolvendo-a a Deus. No caso de um animal que morria por si mesmo, nenhum humano tinha tirado uma vida, e este requisito podia ser posto de lado. O único assunto envolvido era a limpeza cerimonial.

É importante notar que a proibição contra comer sangue de um animal não teria resultado na morte de um homem ou mulher devotos. De fato, muitas vezes argumenta-se que o objetivo destas observâncias, em parte, era proteger a saúde dos crentes. Mas se essa proibição for aplicada a um procedimento médico, resulta freqüentemente no sofrimento e morte de Testemunhas de Jeová. Tal conseqüência é suficiente para mostrar que esta extensão adicional da proibição contra comer sangue não faz parte das intenções da Lei mosaica. Vale a pena notar que nenhum grupo de judeus aplica estas sanções ao uso médico do sangue, nem mesmo os judeus mais ortodoxos que estão sempre tão preocupados em não desagradar a Deus.

Ao concluirmos a nossa análise desta seção da Bíblia, estabelecemos o seguinte:

  • A Lei mosaica não é vinculativa para os cristãos. Isto é reconhecido pelas escrituras e pela Sociedade Torre de Vigia.

  • A Lei mosaica proíbe que se coma sangue de forma deliberada. A Lei nada diz sobre usar sangue para "sustentar a vida".

  • A Lei mosaica descreve situações em que uma pessoa podia indiretamente comer sangue sob certas circunstâncias.

  • O sangue não possui propriedades místicas. Se um israelita matava um animal, tinha de derramar o sangue no chão em reconhecimento de que tinha tirado uma vida com permissão divina e estava a devolvê-la a Deus.

Antes de avançarmos para a análise do último texto usado pelas Testemunhas de Jeová, em Atos dos Apóstolos, é importante tomarmos nota da ordem pela qual as proibições ocorrem no livro de Levítico, pois isto vai ser essencial para entendermos a próxima seção em Atos capítulo 15:

1.º Sacrifícios de participação em comum (ofertas de alimento) deviam ser feitos apenas a Jeová Deus (Levítico 17:1-9).

2.º Comer sangue de forma deliberada e intencional era proibido (Levítico 17:10-14).

3.º Só numa situação excepcional é que um animal que tinha morrido por si mesmo ou sido dilacerado por uma fera podia ser consumido (Levítico 17:15-16; veja também Deuteronômio 14:21, 28-29).

4.º Eles não se podiam envolver em atos sexuais imorais ou relações incestuosas (Levítico 18:1-27).


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