A Maneira Bíblica de Tratar as Mulheres com Dignidade

Farrell Till


Conforme foi observado em artigos anteriores, uma alegação popular da cristandade é que a Bíblia concedeu às mulheres um estatuto superior àquele que tinham nas sociedades dominadas por outras religiões. Aqueles que fazem essa alegação ou são muito ignorantes sobre o que a Bíblia ensina ou não têm escrúpulos contra deturpar os fatos para tentar fazer avançar a causa da cristandade. Muitas das atitudes deploráveis em relação às mulheres que encontramos na Bíblia já foram examinadas, mas nenhuma era mais flagrantemente sexista no seu alcance do que um "teste" em Números 5, que Iavé requeria das mulheres acusadas de adultério.

Se qualquer homem suspeitasse que a sua esposa se estava "desencaminhando" mas não tivesse qualquer evidência para confirmar as suas suspeitas, ele tinha o direito de levá-la ao sacerdote, caso "o espírito de ciúme tenha vindo sobre ele" (vs. 11-15), e o sacerdote sujeitá-la-ia a um julgamento por ordálio, no qual ela tinha de passar para provar a sua inocência. Requeria-se que o homem trouxesse uma oferta de alimentos, que o sacerdote colocaria nas mãos da mulher. O sacerdote então tomaria uma mistura de "água santa" e poeira do chão do tabernáculo, que era chamada "a água amarga que traz maldição", e diria um encantamento sobre a mulher:

[19] "'E o sacerdote tem de fazê-la jurar e tem de dizer à mulher: "Se nenhum homem se deitou contigo e se, enquanto estavas sujeita a teu esposo, não te desencaminhaste em qualquer impureza, sê livre do efeito desta água amarga que traz maldição. [20] Mas, caso te tenhas desencaminhado enquanto estavas sujeita a teu esposo, e caso te tenhas aviltado e algum homem, além de teu esposo, tenha posto em ti sua emissão seminal ..." [21] O sacerdote tem de fazer então a mulher jurar com um juramento que envolve maldição e o sacerdote tem de dizer à mulher: "Jeová te ponha por maldição e por juramento no meio do teu povo, por Jeová deixar que tua coxa decaia e teu ventre inche. [22] E esta água que traz maldição tem de entrar nos teus intestinos para fazer teu ventre inchar e tua coxa decair." A isto a mulher tem de dizer: "Amém! Amém!" (vs. 19-22)

Neste ponto, requeria-se que a mulher dissesse "Amém! Amém!" (v. 22). Quem diz que Iavé não tinha um senso de justiça?

Em seguida, o sacerdote escreveria "estas maldições" num livro e iria "obliterá-las para dentro da água amarga" (v. 23), momento em que a "água amarga" conteria não só poeira do chão do tabernáculo mas também aparentemente quaisquer outras substâncias contaminadas que pudessem estar na "tinta" e na superfície do livro que foi raspado. Depois disto, requeria-se que a mulher bebesse "a água amarga que traz maldição e a água que traz maldição tem de entrar nela como algo amargo" (v. 24).

O sacerdote tomaria a "oferta de cereais do ciúme" da mão da mulher e teria de "mover a oferta de cereais para lá e para cá perante Jeová" e depois levá-la para o altar. Ele tomaria uma mão cheia da oferta como "lembrança dela" e queimá-la-ia no altar. (Não estou a inventar nada disto; está tudo na palavra inspirada de Deus.) Aparentemente, neste ponto a mulher teria de beber mais um gole da água amarga, só para o caso de a primeira dose não ter feito já dano suficiente. O texto inspirado diz-nos que depois de a mulher ter bebido a água amarga, "então terá de se dar que, se ela se aviltou por ter cometido um ato de infidelidade para com seu esposo, então a água que traz maldição terá de entrar nela como algo amargo e seu ventre terá de inchar, e sua coxa terá de decair, e a mulher terá de tornar-se maldição entre o seu povo" (v. 27). No entanto, conforme foi sugerido anteriormente, Iavé tinha um senso de justiça, pois "se a mulher não se tiver aviltado, mas estiver limpa, então terá de ficar livre de tal punição; e ela terá de ser feita grávida por sêmen" (v. 28).

Ora, não era isso uma ação decente da parte do misericordioso Iavé? Vivendo em tempos esclarecidos, todos podemos adivinhar o que aconteceu durante essas cerimônias. Algumas mulheres aparentemente passariam no teste, e outras aparentemente falhariam. Sabemos, porém, que os fatores de culpa ou inocência não teriam estado envolvidos. Da mesma forma que algumas pessoas hoje são resistentes a bactérias e vírus e podem viver no meio de epidemias sem serem infectadas, ao passo que outras caem vítimas das doenças que eles causam, sem dúvida aconteceu o mesmo com as mulheres que foram sujeitas a este julgamento por ordálio para testá-las quanto ao adultério. Era tudo uma questão de constituição individual. Algumas mulheres podiam beber da "água amarga" contaminada e não sentir efeitos adversos, ao passo que outras provavelmente tiveram infeções internas que fizeram com que os 'ventres inchassem' e as suas 'coxas decaíssem'. A culpa ou inocência, porém, nada tinham que ver com isso. A resistência individual à infeção teria sido o principal fator determinante. Na sua magnanimidade, Iavé decretou que se o ventre da mulher não inchasse e as suas coxas não decaíssem, então ela estava inocente e estaria livre e "terá de ser feita grávida por sêmen". Sim, afinal, é esse o único dever das mulheres, estarem livres para serem feitas "grávidas por sêmen", não é? É uma parte vital da dignidade e estatuto elevado que a Bíblia concedeu às mulheres.

Bem, o que acontecia quando a mulher "passava o teste"? Será que o marido era responsabilizado de algum modo por ter acusado falsamente a sua esposa? Aqueles que fazem essa pergunta sem dúvida desenvolveram um senso de justiça por terem sido sujeitos a muita filosofia moderna sobre a igualdade dos sexos. Tal igualdade simplesmente não era o modo de Iavé fazer as coisas, portanto somos informados que quando o julgamento por ordálio acabava, "o homem terá de ser inocente de erro" (v. 31). No entanto, a mulher que não passava no teste "responderá pelo seu erro."

Um assunto interessante é suscitado pela referência à mulher "ser feita grávida por sêmen" depois de passar o teste e assim estar "livre" para isso. Podemos imaginar que numa sociedade supersticiosa que usava este julgamento por ordálio para testar as mulheres suspeitas de adultério, teriam existido muitas mulheres grávidas que foram levadas perante os sacerdotes para beber a assim chamada "água amarga", e sem dúvida muitas delas, quer fossem inocentes ou culpadas, não passavam no teste. Se a mistura de "água santa" e substâncias contaminadas produzia algo parecido com ventres inchados e coxas decaídas, conforme descrito nas instruções cerimoniais, podemos também imaginar que muitas mulheres grávidas tiveram abortos que foram provocados pela "água amarga" e que algumas mulheres ficaram estéreis devido aos seus efeitos. Este ponto não é dito para defender nem para condenar a prática do aborto, mas antes para sugerir que este "teste de adultério" coloca um problema para aqueles que argumentam tão fervorosamente que o aborto viola a "lei de Deus", pois aqueles que assim argumentam estão presumivelmente a referir-se ao mesmo deus que ordenou este "teste para o adultério" que teria apresentado ameaças óbvias para a vida de qualquer feto cuja mãe fosse obrigada a submeter-se a ele. Será que um deus que está tão preocupado com o bem estar de uma criança por nascer elaborou esse plano, ou isso era simplesmente uma prática que se originou com pessoas primitivas e supersticiosas, que pensavam que o seu deus estava a dirigir o resultado do teste? Isso é algo em que os biblicistas deviam pensar, ao ponderarem os problemas que este julgamento por ordálio coloca à alegação deles de que a Bíblia elevou a dignidade das mulheres muito acima da que elas usufruíam em outras sociedades religiosas.


Nota do Tradutor

O Comentário de Matthew Henry diz que vários escritores judaicos dizem que a lei era mesmo posta em prática:

«O bispo Patrick diz, segundo alguns escritores judeus, que o efeito dessas águas aparecia imediatamente, ela ficava pálida e seus olhos ficavam prestes a sair da cabeça. O Dr. Lightfoot diz que às vezes [o efeito] não aparecia antes de dois ou três anos, mas ela não tinha filhos, ficava doente, definhava e finalmente apodrecia; é provável que alguns indícios surgissem imediatamente. O rabino diz que o adúltero também morria no mesmo dia e hora que a adúltera, e da mesma maneira também, que sua barriga inchava e suas partes secretas apodreciam: uma doença talvez não muito diferente daquela que nestas últimas eras a mão vingadora de um Deus justo tem feito o flagelo da impureza, e com o qual prostitutas e os que têm relações com elas infectam, atormentam e arruínam uns aos outros, uma vez que escapam do castigo dos homens. Os médicos judeus acrescentam que as águas só tinham este efeito sobre a adúltera no caso de o marido nunca ter ofendido da mesma forma; mas que, se ele em algum momento contaminou o leito conjugal, Deus não lhe deu razão contra sua esposa injuriosa; e que, portanto, nas últimas e degeneradas eras da igreja judaica, quando a impureza abundava, esta forma de provação foi geralmente abandonada e deixada de lado; os homens, conhecendo os seus próprios crimes, contentavam-se em não saber os crimes das suas esposas. E a isso talvez se possa referir a ameaça (Os. 4:14): não castigarei os vossos cônjuges quando cometerem adultério, pois vós mesmos estais separados com prostitutas. Se ela fosse inocente, a água que ela bebeu seria curativa para ela: Ela será livre e conceberá semente, v. 28. Os escritores judeus magnificam os bons efeitos desta água para a mulher inocente, para recompensá-la pelo mal que lhe foi feito pela suspeita, ela deveria, depois de beber estas águas, ficar mais forte e parecer melhor do que nunca; se ela estivesse doente, ela deveria tornar-se saudável, deveria dar à luz um filho varão e ter um trabalho de parto fácil.»

O comentário de Jamieson, Fausett & Brown diz:

«Desde os primeiros tempos, o ciúme dos orientais estabeleceu provações para a detecção e punição de suspeitas de falta de castidade nas esposas. A prática era profundamente enraizada e também universal. E tem-se pensado que, sendo os israelitas fortemente inclinados a favor de tais usos, esta lei dos ciúmes "foi incorporada entre as outras instituições da economia mosaica, a fim de libertá-la dos ritos idólatras que os pagãos haviam misturado com ela".»


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