Profecia Sobre um Nascimento Virginal?

Kenneth E. Nahigian


A profecia é uma ciência obscura, e a profecia bíblica é mais obscura do que a maioria. Aquelas profecias do Velho Testamento, por exemplo. Os evangélicos nunca se cansam de nos dizer que centenas delas foram cumpridas na vida de Jesus, demasiado numerosas para ter sido coincidência. Mas quantas destas são reais, e quantas são prophetia ex eventu -- profecias construídas depois dos fatos, produtos de seleção e interpretação cuidadosa?

Para ter uma idéia, vejamos a mais famosa, a profecia da criança Emanuel tal como é apresentada no Evangelho de Mateus:

"Agora isto aconteceu para que se cumprisse o que foi falado sobre o Senhor pelo profeta, dizendo, Olhai, uma virgem terá uma criança, e dará à luz um filho, e chamar-lhe-ão Emanuel, que traduzido significa Deus Está Conosco." (Mateus 1:22-23, KJV)

A maioria dos bons cristãos tomam isto à letra, seguros de que o profeta Isaías realmente descreveu a miraculosa concepção e nascimento de Jesus com setecentos anos de antecedência. Mas será que Isaías fez mesmo isso? As autoridades são quase unânimes. A resposta é não.

O que disse Isaías realmente? Lendo Isaías 7:14 (texto massorético), encontramos estas palavras precisas:

"Portanto, o próprio Senhor vos dará um sinal; Eis, ha'almah conceberá, e dará à luz um filho, e há de chamá-lo pelo nome de Emanuel."

A interpretação de Mateus sobre este versículo tem vários problemas, o maior dos quais está na palavra hebraica 'almah. Escrevendo em grego, o autor do evangelho transformou almah em parthenos, uma palavra que geralmente (mas nem sempre) significa "virgem". De fato, ele tinha um precedente para isto; a Septuaginta, uma tradução do Velho Testamento usada por judeus de língua grega do seu tempo, usou realmente parthenos na passagem de Isaías. Mas a Septuaginta era na sua maior parte uma tradução notoriamente descuidada, e a sua versão de Isaías estava geralmente mais repleta de erros do que o resto. Na Idade Média os judeus tinham abandonado a Septuaginta, e traduções gregas posteriores, feitas por Áquila, Teodócio, Luciano e outros, não usaram a palavra parthenos. (A Septuaginta, geralmente conhecida como a LXX, ainda é preferida pelas igrejas Ortodoxas Orientais.)

Certamente, o Velho Testamento hebraico, mais antigo do que a Septuaginta, usou 'almah. Então, o que significava essa palavra? Embora rara na Bíblia hebraica, 'almah ocorre em algumas passagens, notavelmente em Gênesis 24:43 e Êxodo 2:8, mas um exame dos contextos destas passagens não mostrará nada que sugira que o nome imputava virgindade.

Por outro lado, um jovem rapaz no Velho Testamento era chamado na'ar ou elem, cujas formas femininas eram na'arah e 'almah, respectivamente. O uso limitado de elem (rapaz ou jovem) no Velho Testamento nunca implicava pureza sexual; assim, uma 'almah era uma adolescente do sexo feminino, virgem ou não, exatamente como um elem era um adolescente do sexo masculino. De fato, um versículo parece usar 'almah ao referir-se a uma não virgem. É Provérbios 30:19, que enumera quatro coisas demasiado maravilhosas para serem compreendidas: o caminho de uma águia no ar, o caminho de uma serpente numa rocha, o caminho de um navio no mar, e o caminho de um homem com uma donzela ('almah). Para dizer o mínimo, "o caminho de uma 'almah" certamente comprometeria um estado de pureza sexual, mas mais grave do que este fato muito óbvio é a comparação que o escritor fez em seguida: "Tal é o caminho de uma mulher adúltera: ela come, esfrega a boca e diz: 'Não fiz nada de mal'" (30:20, NAB). Seria estranho se o autor usasse 'almah para denotar pureza sexual e depois comparasse isso com as ações repetidas de uma mulher adúltera. É mais provável que o ponto do autor fosse que todas estas coisas têm um elemento em comum: não deixam traço.

Além disto, a Tora de fato tem uma palavra explícita para virgem: é betulah ou bethulah, que é sempre usada onde o contexto requer virgindade. (Para confirmação, veja Gênesis 24:16. Levítico 21:14, e Deuteronômio 22:15-19.) Até mesmo Isaías a usou em Isaías 62:5. O fato de essa palavra não ser usada na passagem do "Emanuel" é uma sugestão muito forte de que Isaías falava apenas sobre uma jovem mulher, não falava especificamente de uma virgem.

Mais relevante ainda, praticamente todos os comentários modernos concordam com os peritos talmúdicos em como o "sinal" de Isaías não tinha nada que ver com um messias. Tendo examinado meia dúzia de tais comentários na preparação deste artigo, descobri apenas um discordante. Significativamente, era um que debitava a linha oficial do partido fundamentalista em todos os outros pontos. Leitores interessados podem dar um passeio até à biblioteca e examinar o volumoso Interpreter's Bible (Vol. 5, pp. 217-222), uma das obras mais fiáveis no campo. Ou mais sucintamente, tente o popular Harper's Bible Dictionary (Paul J. Achtemeier, editor geral, 1985), página 419, onde encontramos esta declaração:

"É claro, porém, que [...] Isaías 7:14 não falou do nascimento miraculoso de Jesus séculos mais tarde [...] O sinal de Emanuel oferecido pelo profeta a Acaz tinha que ver com o nascimento iminente de uma criança, de uma mãe que Acaz e Isaías conheciam, e significava a presença de Deus com o seu povo [...]"

De fato, a palavra que Isaías usou para "sinal" foi 'ot, que na Bíblia hebraica indicava sempre um sinal ou prenúncio iminente, não no futuro longínquo. Continue lendo e verá o sinal de Isaías aparecer logo poucos versos adiante (Isaías 8:3-4), quando uma certa profetisa dá à luz um filho -- uma criança a quem Deus chamou "Emanuel" no versículo 8. Em contraste com isso, em nenhum lugar do Novo Testamento encontramos alguma personagem que chame Emanuel a Jesus. Porquê, então, a confusão? Evidentemente, o autor do Evangelho de Mateus tinha um interesse velado na igreja nascente e queria basear os novos mitos cristãos nas profecias judaicas sempre que possível. Quase todos os peritos concordam que este "Mateus" não era o apóstolo, mas antes um cristão de língua grega que vivia em Antioquia da Síria (ou perto), que escreveu aproximadamente em 90 A.D., cerca de duas gerações depois da crucificação. Muito provavelmente, ele estava familiarizado com a versão de Isaías da Septuaginta. (A idéia de que Mateus escreveu o primeiro evangelho foi uma tradição iniciada pelo Bispo Pápias de Hierápolis no segundo século.)

De qualquer modo, é evidente que os cristãos primitivos também teriam gostado de um salvador nascido de uma virgem, devido à acirrada competição, porque muitas outras religiões rivais tinham um salvador assim. (Mitra, Zoroastro, Adónis e Dionísio são apenas alguns.) Além disso, sabemos que os escritores dos evangelhos não hesitavam em manipular e até inventar detalhes para "abrilhantar" a história de Jesus. É por isso, por exemplo, que encontramos genealogias conflitantes para Jesus em Mateus 1:1-16 e Lucas 3:23-38.

Considerando todos estes aspectos, não surpreende que "Mateus" tirasse um pouco Isaías do contexto e tentasse obter um novo significado. O que surpreende é que esse truque literário tenha aumentado em importância até se tornar numa pedra basilar da Cristandade e ainda deixe os fundamentalistas modernos tão confusos. Portanto, sacudamos o pó das nossas Bíblias (eu prefiro a New Revised English Bible pela clareza e a Revised Standard Version pela beleza) e leiamos novamente a profecia de Emanuel -- no contexto.

O cenário é a guerra Siro-Efraimita (cerca de 734 a.C.). O iníquo Rei Acaz de Judá estava nervoso por causa de Efraim (outro nome para o reino do norte, Israel) e Damasco (capital da Síria), que estavam a planear um ataque preventivo. Isaías entra em cena, oferecendo um sinal. Acaz duvida. Isaías enfurece-se com ele por causa da falta de fé mas depois providencia um sinal. Nasceria uma criança do sexo masculino. Antes que esta criança tivesse idade suficiente para saber "recusar o mal e escolher o bem", a Assíria desolaria tanto Samaria como Damasco (7:16). [Esta sub-profecia, de fato, cumpriu-se em 2 Reis 16:9; 17:5-6.] Depois, para punir Acaz, a própria Assíria junto com o Egito surgiriam como uma ameaça muito maior.

Pense nisto. Se Acaz estava preocupado com um ataque iminente de Samaria e Síria, que sentido tinha oferecer-lhe um sinal que não ocorreria senão sete séculos depois? Para Acaz isto não seria de modo nenhum um sinal. Além disso, se a criança Emanuel era Deus incarnado, como é que Isaías podia falar de um tempo em que Emanuel não sabia o suficiente para escolher o bem e rejeitar o mal? Que dizer da onisciência divina? Note também o paralelismo evidente entre os versículos 7:16 e 8:4. Aqui Isaías está a profetizar praticamente de forma idêntica sobre ambas as crianças. Quanto mais de perto olhamos para isto, mais difícil é negar que estes dois são o mesmo. Dificilmente se pode recriminar os evangélicos por verem um significado especial no nome Immanu'el, hebraico para "Deus Está Conosco", mas esse tipo de linguagem e imaginário eram o pão nosso de cada dia no mundo da velha nomenclatura judaica, onde praticamente todos os nomes próprios pareciam um lembrete da presença de Deus. Assim, temos Isaías, que significa "Ajuda de Deus"; Miguel, que significa "Semelhante a Deus"; Israel, que significa "Lutando contra Deus"; Eliú, que significa "Ele é o meu Deus"; Adonias, que significa "Senhor Javé"; e muitos outros.

Ainda assim, alguns apologistas tentam resgatar a sua exegese favorita igualando tanto Emanuel como Jesus com a criança mencionada um pouco adiante no capítulo 9 de Isaías: "Um menino nos nasceu [...]". É tentador. Essa seção, embora obscura, é de fato uma das passagens mais poderosas e poéticas do Velho Testamento. Pode muito bem ser uma profecia messiânica antiga (gosto de pensar que é), mas seja dito em defesa da verdade que a maioria dos peritos judeus (que é suposto sabem mais do que os evangélicos) insistem que essa é uma ode louvando Ezequias, o filho justo de Acaz (2 Crônicas 29), que subiu ao trono em 720 a.C. e centralizou a adoração de Jeová em Jerusalém. Os vários títulos que lhe são atribuídos, como "Príncipe da Paz" e "Pai Eterno", aparentemente eram títulos honoríficos usados pelos judeus da antigüidade para se referirem aos reis da sua preferência. (Encontramos o mesmo tipo de elogios nos hinos egípcios ao faraó e nos encômios reais da Babilônia.) Os peritos em hebreu também nos lembram, gentilmente, que os verbos hebraicos chave em Isaías 9:6 estão no passado.

Um ponto discutível. Devido às razões apresentadas acima, não podemos usar a criança em Isaías 9:6 como uma ponte ligando Emanuel a Jesus. No que diz respeito às profecias do Velho Testamento sobre o Messias cristão, esta, tal como muitas outras, tem sido sobrestimada.


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