Dissecando a Declaração de Oklahoma

Kenneth Miller


Recentemente o estado de Oklahoma adotou uma declaração para ser colocada nos livros de texto [manuais escolares] de ciências que mencionam a evolução e são usados pelas escolas públicas no estado. (Veja RNCSE 1999; 19 [5]: 7-8, 1999; 19 [6]: 11-2, e 2000; 20 [1-2]: 21). Leitores do RNCSE reconhecerão que o texto da declaração de Oklahoma é tomado diretamente da infame declaração original proposta para os livros de texto [do estado] de Alabama (veja NCSE Reports 1995; 15 [4]:10-1). Infelizmente, a declaração está repleta de inexatidões e distorções científicas que vão confundir os estudantes sobre a natureza da ciência e a ciência da evolução. Tais declarações colocam um fardo indesejável sobre os professores, que têm de corrigir esta desinformação perante os seus estudantes. Também introduzem o precedente perigoso de estabelecer declarações oficiais de funcionários públicos que estão em desacordo com a exatidão científica e a boa prática educacional.

O que se segue é uma análise linha por linha da exatidão científica da declaração. O texto da declaração está indentado e em negrito.

"Mensagem do Comitê de Livros de Texto do Estado de Oklahoma:

"Este livro de texto discute evolução, uma teoria controversa que alguns cientistas apresentam como explicação científica para a origem de coisas vivas, como plantas e humanos."

Esta afirmação é uma tentativa deliberada de enganar leitores jovens sobre o estatuto científico da biologia evolucionária. No seio da comunidade científica, a evolução é tudo menos controversa. Em vez disso, conforme a Academia das Ciências Nacional [dos E.U.A.] declara, a evolução é "o conceito mais importante da biologia moderna" (NAS 1998, viii). Dizer que "alguns" cientistas apresentam a evolução como a explicação para a origem das espécies é igualmente enganador. É como dizer que "alguns" cientistas acreditam que a matéria é composta por pequenas unidades a que chamam átomos. Essa afirmação também seria verdadeira, mas transmitiria um falso senso de incerteza a respeito da teoria atômica. Uma afirmação mais exata diria aos estudantes que a evolução é aceite pela vasta maioria dos cientistas da vida em todo o mundo, e por todas as organizações científicas de topo nos Estados Unidos, incluindo a Academia das Ciências Nacional, como sendo a melhor explicação disponível sobre a origem das espécies.

"Ninguém estava presente quando a vida apareceu pela primeira vez na terra."

Absolutamente correto.

"Consequentemente, qualquer afirmação sobre as origens da vida devia ser considerada como teoria, não como fato."

Esta declaração manifesta um equívoco sério sobre o uso científico dos termos "teoria" e "fato". Uma teoria em ciência é uma explicação de um fenômeno natural, e um fato é uma observação confirmada. Um exemplo de fato é a existência de grande consistência na seqüência de fósseis no registro fóssil, sem qualquer grande ramo da árvore da vida fora de ordem (por exemplo, fósseis de mamíferos nunca são encontrados no Período Devoniano -- uma época marcada pela diversificação de peixes com ossos e o aparecimento dos primeiros anfíbios e insetos). Outro fato é que espécies vivas tendem a ser encontradas onde também são encontrados os seus ancestrais fósseis. Nós damos sentido a estas e a muitas outras observações confirmadas, ou fatos, com a explicação de que as coisas vivas partilham ancestrais comuns, dos quais divergiram. Esta explicação é a teoria da evolução, uma teoria extremamente forte e bem fundamentada. A declaração [nos livros de texto] vai confundir os estudantes sobre estes elementos importantes da ciência. Teorias explicam fatos e, contrariamente à impressão dada pela declaração, isto significa que as teorias são mais importantes do que fatos.

A declaração também vai confundir os estudantes sobre a natureza da ciência ao insinuar que a ciência diz respeito apenas a fenômenos observáveis. Na realidade, são feitas muitas descobertas científicas sobre fenômenos que não são diretamente observáveis, como aqueles que estão muito distantes (astronomia) ou são muito pequenos (física das partículas) bem como aqueles que ocorreram no passado (geologia e biologia evolucionária). O fato de 'ninguém ter estado lá para ver' [um determinado fenômeno] não significa que [esse fenômeno] não pode ser estudado cientificamente, nem significa que não podemos ter confiança nas nossas explicações sobre ele.

Ironicamente, livros de texto de ciência bem escritos colocam ainda menos confiança nas idéias correntes sobre como a vida pode ter-se originado do que a declaração. Tipicamente, idéias sobre a origem da vida são encaradas como hipóteses, colocando-as um degrau abaixo na hierarquia científica de idéias do que o comitê dos livros de texto estava disposto a fazer. (Um exemplo típico disto: "Como é que a vida começou? ... Embora várias hipóteses tenham tentado explicar como a vida pode ter surgido, talvez nunca saibamos as respostas" [Miller e Levine 1998, p. 398].) A declaração faz um erro grave ao elevar hipóteses correntes sobre a origem da vida ao estatuto de teorias (o que significaria que têm aceitação generalizada pela comunidade científica).

"A palavra evolução pode referir-se a muitos tipos de mudança. Evolução descreve mudanças que ocorrem dentro de uma espécie. (Mariposas brancas, por exemplo, podem evoluir para mariposas cinzentas). Este processo é microevolução, que pode ser observado e descrito como fato."

Os biólogos evolucionários usam "microevolução" para se referirem aos processos (a maioria dos quais estão relacionados com genética) que produzem mudanças evolucionárias em populações de espécies: seleção natural, mutação, migração, deriva genética e outros mecanismos. Os escritores da declaração aparentemente partilham esta definição, e estão corretos ao notarem que podemos observar esses processos em ação.

"Evolução também pode referir-se à mudança de uma coisa viva para outra, como répteis [mudando] para pássaros. Este processo, chamado macroevolução, nunca foi observado e deve ser considerado uma teoria."

Aqui os escritores da declaração não usam o significado científico do termo crucial. "Macroevolução", para os biólogos evolucionários, refere-se a um conjunto de processos relacionados com o padrão da mudança evolucionária: como os grupos estão relacionados uns com os outros acima do nível da espécie, taxas de mudança evolucionária, o comportamento das linhagens ao longo do tempo, e assim por diante. Mas na declaração, o termo "macroevolução" significa apenas o princípio geral da evolução: que as coisas vivas descenderam com modificação de ancestrais comuns. Não é isto o que macroevolução significa em ciência, e usar o termo como um sinônimo de evolução engana e confunde os estudantes.

Claramente, os escritores da declaração querem que os estudantes rejeitem a idéia de que as coisas vivas têm uma ascendência comum, e eles são obrigados a aceitar processos de mudança evolucionária bem conhecidos e amplamente demonstrados que, ao longo do tempo, resultam em evolução. A razão para isto é, no fundo, uma crença religiosa sectária conhecida como "criação especial": que todas as coisas vivas foram criadas na sua forma presente e não descenderam com modificação de ancestrais comuns. A criação especial não é apoiada pela ciência -- independentemente de como os autores da declaração tentem redefinir termos científicos.

A evolução não está dividida rigidamente em dois tipos de mudança -- microevolução e macroevolução -- como a declaração deixa implícito. A macroevolução, por exemplo, pode ser usada para referir o processo da especiação, as grandes transformações evolutivas, ou ambos. Mais importante, é geralmente aceite entre biólogos evolucionários que as mudanças microevolucionárias (quer sejam causadas por seleção natural ou por deriva genética) podem acumular-se de modo a causar isolamento reprodutivo, conduzindo assim a especiação ou macroevolução. Será que a macroevolução "nunca foi observada"? Um estudo recente (Reznick e outros, 1997) analisou as taxas observadas de mudança evolutiva em populações de guppies (Poecilia reticulata) no estado natural. As taxas de mudança evolutiva observadas foram "até 7 ordens de magnitude superiores às taxas inferidas do registro paleontológico." Por outras palavras, estudos de campo sobre seleção natural mostram facilmente taxas de mudança mais do que suficientes para explicar as mudanças macroevolutivas documentadas no registro fóssil. Este é apenas um de muitos estudos que lançam sérias dúvidas sobre a asserção de que a macroevolução "nunca foi observada". (Os investigadores também observam: "O nosso trabalho não pode tratar da eficácia de outros mecanismos além da seleção natural, mas alarga a nossa compreensão sobre o que pode ser atingido através deste processo. É parte de um corpo de evidência crescente que diz que a taxa e padrões de mudança alcançáveis através da seleção natural são suficientes para explicar os padrões observados no registro fóssil" (Reznick e outros, 1997, p. 1936).

"Evolução também se refere à crença não provada de que forças aleatórias, não dirigidas, produziram um mundo de coisas vivas."

Esta afirmação é falsa em dois pontos. A evolução não é um processo "aleatório", e caracterizá-la dessa forma engana seriamente os estudantes. A seleção natural, a força mais importante guiando a mudança evolutiva, não é aleatória de modo nenhum, é antes um processo observável, verificável, que afina com precisão a variação nas populações de uma espécie conforme as exigências do meio em que vivem. É verdade, claro, que a variação numa espécie surge de fontes como mutação e a recombinação sexual, que são inerentemente imprevisíveis. Portanto a evolução, como qualquer processo histórico, pode ser influenciada por forças aleatórias.

Mas um problema ainda maior nessa declaração é que atribui à evolução uma idéia que se situa fora da ciência. A questão de saber se a evolução é "dirigida" ou "não dirigida" é um assunto para ser tratado pela teologia e pela filosofia, não pela ciência. Os escritores da declaração pretendem que os estudantes, maioritariamente religiosos, acreditem que a aceitação da evolução é incompatível com a fé. Isto é demonstravelmente falso: muitos cientistas (e clérigos) aceitam tanto a evolução como um Deus que cria através da evolução. Os estudantes não deviam ser ensinados que a evolução eqüivale a ateísmo, no entanto, incrivelmente, é exatamente isso que esta parte da declaração diz.

"Há muitas perguntas ainda não respondidas sobre a origem da vida, que não são mencionadas no teu livro de texto, [...]"

É inteiramente verdade que há "muitas perguntas ainda não respondidas sobre a origem da vida", e a maior parte dos livros de texto de biologia sublinham isso com muito mais detalhe (e de forma mais exata) do que a declaração. De fato, há perguntas ainda não respondidas em todas as áreas da biologia, o que torna a biologia uma disciplina excitante e vigorosa. A declaração, no entanto, não procura atrair a atenção do estudante para as perguntas ainda não respondidas na bioquímica, na ecologia ou na fisiologia; isola a evolução como sendo digna de atenção especial, como se esta tivesse dificuldades especiais que os outros campos não têm.

Cientificamente, isso não é correto, e as próximas frases da declaração mostram até que ponto os seus autores estão mal informados:

"[...] incluindo: Por que razão os grupos principais de animais aparecem subitamente no registro fóssil, conhecido como a Explosão do Câmbrico?"

Esta pergunta induz seriamente em erro os estudantes sobre a real história natural deste planeta. O termo "grupo principal" é desprovido de significado científico. Muitos estudantes, por exemplo, podem encarar os mamíferos como um grupo principal. No entanto, os mamíferos não apareceram durante a explosão do Câmbrico, apareceram no Triásico, cerca de 300 milhões de anos mais tarde. O mesmo se pode dizer de pássaros, insetos, répteis e anfíbios, cada um dos quais é um grupo principal segundo o significado comum do termo, e nenhum dos quais apareceu no período do Câmbrico. Claramente, os autores da declaração podiam ter evitado essa confusão se tivessem referido apenas os filos animais em vez de "grupos principais".

Infelizmente, mesmo que eles tivessem feito isso, a pergunta continuaria a induzir em erro. Nem todos os filos animais se originaram durante o Câmbrico. Introduzindo este erro grave, os autores da declaração parecem desconhecer que os primeiros animais multicelulares apareceram na terra durante o Período de Ediacara, muitos deles antecedem o Câmbrico em mais de 100 milhões de anos.

"Por que razão não apareceram quaisquer novos grupos principais de coisas vivas no registro fóssil já por um longo tempo?"

Esta pergunta peculiar requer que os estudantes determinem o que se quer dizer com "grupos principais" e também o que se quer dizer com "um longo tempo". Nenhuma dessas duas coisas, evidentemente, tem qualquer significado científico. Poderíamos encarar 100 anos como um longo período de tempo, e realmente é verdade que nenhum novo filo se originou nos últimos 100 anos. No entanto, pelos padrões do tempo geológico, um dos "grupos principais de coisas vivas" mais importante de fato originou-se recentemente. Plantas com flores (Anthophyta) apareceram pela primeira vez no Cretáceo, há cerca de 125 milhões de anos. Plantas com flores só apareceram nos últimos 3% dos 4,5 bilhões de anos da história geológica do planeta, o que certamente se qualifica como recente. Portanto esta pergunta da declaração, que ignora o aparecimento evolucionário recente das plantas com flores, faz pressuposições que estão claramente erradas.

"Por que razão grupos principais de plantas e animais não têm quaisquer formas de transição no registro fóssil?"

Esta pergunta também faz pressuposições que estão claramente erradas. O registro fóssil, na verdade, está repleto de exemplos esplêndidos de formas de transição, conforme a Academia das Ciências Nacional [dos E.U.A.] se deu ao trabalho de explicar:

"Têm sido descobertas tantas formas intermédias entre peixes e anfíbios, entre anfíbios e répteis, entre répteis e mamíferos, e ao longo das linhas de descendência dos primatas que muitas vezes é difícil identificar categoricamente quando ocorre a transição de uma espécie particular para outra. De fato, praticamente todos os fósseis podem ser encarados como intermediários num certo sentido; são formas de vida que vêm entre as formas que as precederam e as que se seguiram." (NAS 1999, p. 21)

"Como é que tu e todas as coisas vivas vieram a possuir um conjunto de instruções tão completo e complexo para construir um corpo vivo?"

Esta é uma excelente pergunta, e os estudantes fariam bem em mantê-la em mente à medida que estudam biologia. Podem interrogar-se, por exemplo, por que razão o "conjunto de instruções complexo" mencionado por essa frase inclui os vestígios genéticos de uma antiga infeção por um vírus semelhante ao HIV. O fato interessante sobre estes vestígios genéticos é que encontramo-los não só nos humanos, mas também nos nossos parentes primatas mais próximos, o que indica que estas seqüências virais de ADN entraram no genoma há cerca de 30 milhões de anos. Conforme disseram os investigadores que fizeram esta descoberta, a existência de seqüências idênticas em espécies com um grau próximo de parentesco é "evidência muito boa" de que partilhamos um ancestral comum com estes outros primatas (Yang e outros, 1999). Conforme escreveu a Academia de Ciências Nacional [dos E.U.A.], "linhas de evidência convincentes demonstram para além de qualquer dúvida razoável que a evolução ocorreu enquanto processo histórico e continua a ocorrer hoje" (NAS 1998, p. 16).

"Estuda arduamente e mantém uma mente aberta. Um dia podes contribuir para as teorias sobre como as coisas vivas apareceram na terra."

Até que enfim, um conselho excelente!

Por qualquer padrão, esta declaração falha até mesmo no menos exigente dos testes de literacia científica. Estão incluídas na declaração 12 frases. Destas, apenas 5 estão livres de erros graves. 3 são seriamente enganadoras, e 4 são categoricamente falsas. Um professor de biologia que fosse atribuir uma classificação a esta declaração com base na proporção de respostas corretas calcularia uma pontuação não superior a 42% -- classificação que dá direito a reprovação.

Os nossos estudantes merecem melhor.

É verdade que a admoestação da declaração para os estudantes estudarem arduamente e manterem uma mente aberta encaixa-se nas melhores tradições de estudo científico. Mas manter uma mente aberta não significa que se deva ensinar deliberadamente disparates aos estudantes, nem significa que devemos fingir que sabemos menos do que realmente sabemos sobre a história natural deste planeta e sobre as origens das espécies, incluindo a nossa própria. O que está no centro de uma educação científica é o ceticismo saudável, não é a elevação de falsidades e meias verdades ao estatuto de teoria científica.

Defendo que qualquer livro de texto e, de fato, qualquer curso nas ciências biológicas deve dizer aos estudantes a verdade pura e simples, conforme descrita numa frase pela Academia das Ciências Nacional [dos E.U.A.]: a "evolução biológica é a melhor explicação científica que temos para a enorme variedade de observações sobre o mundo vivo" (NAS 1999, p. 28).

Kenneth R. Miller
Departamento de Biologia
Brown University
Providence, Rhode Island

Referências

  • Miller KR, Levine J. Biology: The Living Science (Upper Saddle River (NJ): Prentice-Hall, 1998)
  • National Academy of Sciences (NAS). Teaching about Evolution and the Nature of Science (Washington DC: National Academy Press, 1998)
  • National Academy of Sciences (NAS). Science and Creationism: A View from the National Academy, 2nd. ed. (Washington DC: National Academy Press, 1999)
  • Reznick DN, Shaw FH, Rodd FH, Shaw RG. "Evaluation of the Rate of Evolution in Natural Populations of Guppies (Poecilia reticulata)". Science, 1997 Mar 28; 275: 1934-7
  • Yang J, Bogerd HP, Peng S, Heather Wiegand H, Truant R, Cullen BR. "An ancient family of human endogenous retroviruses encodes a functional homolog of the HIV-1 Rev protein" Proceedings of the National Academy of Sciences, 1999 Nov 9; 96 [23]: 13404-8

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