2006-02-17

Recensão do Livro Crise de Consciência de Raymond Franz

Recensão do Livro Crise de Consciência de Raymond Franz

David A. Reed


Crise de Consciência, de Raymond Franz (ex-membro do Corpo Governante das Testemunhas de Jeová), editora Hagnos, Fevereiro de 2002.

Este livro foi banido, mesmo antes de ter sido escrito.

Crise de Consciência, de Raymond Franz
Crise de Consciência (2002)

O autor, Raymond Franz, tinha estado sob excomunhão pela Sociedade Torre de Vigia (Testemunhas de Jeová) desde 1981, quando foi excomungado por ter tomado uma refeição com um indivíduo que tinha sido anteriormente banido, e que era o seu senhorio. Cinco milhões de Testemunhas de Jeová estão agora proibidas de falar com Franz, ler o livro dele, ou até mesmo dizer "Olá" se o encontrarem na rua.

E a Watchtower faz bem em escudar os seus seguidores deste homem -- se quer que eles continuem a ser seguidores. Sobrinho do falecido presidente da organização, Fred Franz, Raymond passou nove anos como membro do seu altamente secreto Corpo Governante. A informação interna que Franz agora revela no seu livro é suficiente para abalar a fé de qualquer Testemunha de Jeová -- não em Deus, mas na organização que alega ser o porta-voz de Deus.

Pode o pequeno Pedrinho receber um transplante de órgão, ou os pais dele têm de recusar? Pode a D.ª Paula fazer o que o marido dela quer na cama, ou tem de dizer "NÃO"? Pode o António aceitar trabalho num hospital como alternativa ao serviço militar, ou tem de recusar e ir para a prisão? Se os pais do pequeno Pedrinho, a D.ª Paula e o António forem Testemunhas de Jeová, as respostas que eles dão vêm da sede da Torre de Vigia, em Brooklyn, Nova Iorque. E a palavra final pertence ao Corpo Governante.

Como membro desse grupo de elite, Ray Franz tinha de participar na tomada destas decisões para as Testemunhas em toda a terra. À medida que os votos do Corpo Governante oscilavam para um lado e para o outro -- e milhões de vidas familiares das Testemunhas ou até as próprias vidas das Testemunhas oscilavam na balança -- Franz começou a ficar cada vez mais arrasado com o que via acontecer.

Um dos capítulos descreve em detalhe como é que o Corpo Governante decidiu que certa conduta entre marido e esposa na cama seria pretexto para divórcio e desassociação (excomunhão formal e ostracismo). Depois do édito ser promulgado (na The Watchtower de 1.º de Dezembro de 1972, pp. 734-736 [A Sentinela de 1.º de Novembro de 1973, pp. 670-671]) muitos casamentos acabaram como consequência disso. Sete anos mais tarde, o Corpo Governante mudou de opinião e inverteu a política.

Da mesma forma, o Corpo Governante estava a legislar outros assuntos pessoais para as Testemunhas de Jeová: tratamento médico, relacionamentos familiares, etc. As Testemunhas de Jeová na base da pirâmide hierárquica aceitaram as decisões do Corpo Governante como sendo a "Lei de Deus," mas Ray Franz sabia que cada decisão era meramente o produto de esquesitices humanas, opiniões e preconceitos dos seus pares à medida que eles atiravam idéias para cima da mesa e as punham a votos. Franz lembrou-se das palavras de Jesus aos Fariseus: "Assim vós anulais a palavra de Deus por causa da vossa tradição... os ensinos deles não são outra coisa senão regras feitas pelo homem." (Mateus 15:6, 9, New International Version)

Tal como os Quakers, Menonitas, Adventistas do Sétimo Dia e outros, as Testemunhas de Jeová têm recusado pegar em armas como soldados. Mas, ao contrário deles, as Testemunhas também têm recusado "serviço alternativo" civil, como trabalho em hospitais. (As Testemunhas dizem ao juiz que as suas decisões são o resultado de consciência pessoal, mas na realidade, qualquer Testemunha que não siga as instruções da organização será "desassociada" -- cortada de toda a associação com família e amigos -- exactamente como se fosse excomungada.) Esta prática veio a discussão numa série de reuniões do Corpo Governante em 1978.

Raymond Franz
Raymond Franz (1922-2010)

Foi feita uma moção em cada uma dessas reuniões para permitir às Testemunhas de Jeová aceitar trabalho civil em hospitais. Em todas as reuniões a maioria do Corpo Governante (Franz diz os nomes deles) votou a favor da mudança. Mas a resolução nunca foi aprovada, porque era necessária uma maioria de dois terços. Por causa disto, rapazes jovens entre as Testemunhas de Jeová continuaram a recusar trabalho civil em hospitais -- enfrentando assim sentenças de prisão -- embora a maioria do Corpo Governante achasse que não havia qualquer objecção a tal trabalho.

Outro assunto de "consciência" para as Testemunhas envolvia os cartões de membro de partidos políticos. Quando os governantes do país Africano Malawi exigiram que os cidadãos comprassem "cartões do partido," a Watchtower Society tomou posição contra isso. Por aderirem a esta posição, as Testemunhas do Malawi foram presas, espancadas e sofreram outros maus tratos às mãos dos leais ao governo.

Entretanto, no México as Testemunhas tinham o hábito de subornar funcionários para obter cartões identificando-os como membros da reserva que tinham cumprido um ano de serviço militar. Não ter a cartilla resultaria em alguns inconvenientes, mas não no tipo de sofrimento que as Testemunhas enfrentavam no Malawi. Franz conta em pormenor como a sede da Watchtower deu a sua aprovação a ambas as políticas, deixando as Testemunhas de Jeová Africanas enfrentar perseguição brutal, enquanto permitiam que as Testemunhas Mexicanas comprassem cartões 'por debaixo da mesa.' Isto causou muito sofrimento em África. E contribuiu para a "crise de consciência" por que Raymond Franz passou como membro do Corpo Governante cujos votos reforçavam estas regras contraditórias.

A parte final de Crise de Consciência é dedicada aos acontecimentos que envolveram a remoção de Ray do Corpo Governante e a subsequente expulsão da organização das Testemunhas de Jeová. Se não fosse pelo contexto actual e pelas questões doutrinais peculiares às Testemunhas de Jeová, a história seria muito semelhante a qualquer julgamento por 'heresia' pela Inquisição medieval. Ou a evidência baseada em rumores e 'ouvir dizer' poderia ter sido tirada do julgamento das bruxas de Salem do Massachusetts colonial.

É verdade que as vítimas da Inquisição foram queimadas na estaca e as bruxas de Salem foram enforcadas, enquanto Raymond Franz foi apenas privado do seu sustento, difamado publicamente, e cortado da associação com a família e amigos de longa data. Ainda assim, ficamos com a impressão de que a única razão porque Franz é hoje um escritor, em vez ser de um cadáver, é que a Watchtower Society [Sociedade Torre de Vigia] não pode administrar a pena capital. Contudo, do ponto de vista das Testemunhas de Jeová, Franz é um homem morto. Crise de Consciência será de especial interesse para as Testemunhas de Jeová -- as poucas que se atreverem a lê-lo. Mas este livro dá-nos a todos algo em que pensar acerca do nosso relacionamento pessoal com Deus e da nossa atitude para com homens que alegam ter autoridade religiosa.